Não me perca à vista


Um dia desses, um amigo me perguntou o que eu queria ser. E eu respondi que eu queria continuar desenvolvendo meu trabalho. Não satisfeito com minha resposta ele repetiu a pergunta enfaticamente: “Raquel, o que você quer ser?”. Então no meio tempo entre a pergunta e a resposta, lembrei-me da minha sobrinha de seis anos, que estuda numa das melhores escolas de São Paulo, me confessando que sonhava em ser cabeleireira. Logo, da confissão inocente de uma criança, veio a minha resposta ao meu amigo: “Quero ser escritora!”. E ele, um carinha persistente me perguntou o que estava fazendo para que isso acontecesse. Eu diante, de tanta insistência, o contei que escrevia num blog.
Naquele momento, porém, não tive coragem de dizê-lo que não publicava um texto há mais de três anos. Nem no blog e nem aqui, no jornal a qual retorno agora. Então, incomoda pela pergunta dirigida a mim por esse filho de Deus e encorajada pela fala da minha antiga leitora Dirce, funcionária da escola particular em que eu cursei o Ensino Médio e que um dia me disse que gostava dos meus textos, publicados aqui, cá está, no estilo “filho pródigo”.
Sem vergonha de dizer, somente aos trinta e dois anos de idade, acredito que começo a entender a cura da cegueira nos contada na Bíblia Sagrada além da questão física.
Nos últimos tempos, após alguns encontros psicanalíticos, comecei a ter visão do quanto realmente conseguimos enxergar ou o quanto nos permitimos. As últimas notícias do jornal só falavam do voo da Chapecoense. Enquanto se falava das possíveis causas do acidente, de comentários inúteis e mesquinhos como: “Essa manchete toda é só porque são jogadores de futebol!”, eu tentava desviar do assunto. Logo os corpos chegaram a Chapecó, sob uma tempestade digna do tamanho da tragédia, eu passava pela sala de TV enquanto meu amigo. assistia a transmissão diretamente da Arena Condá. Naqueles cinco segundos em que passei por ali, fui acometida pela cena que revelou porque eu fugia daquele “Papo Chapecó”. Era um menino, que deve ter uns dez anos, uniformizado de esperança, debruçado sobre o caixão do pai. Recordei-me instantaneamente do velório do meu pai, em que eu também posta de bruços sobre a sua ausência, sentia todo o peso do mundo em minhas costas ao mesmo tempo em que não sentia meus pés no chão. Aquele, então foi meu ponto de encontro com aquela tragédia, o momento em que me permiti enxergar um pouco mais. Nos dias seguintes, fui abatida por uma sensação desesperadora regada a lágrimas e soluços, pela presença da ausência do meu pai e, por pensamentos recorrentes que aquele garoto, no auge da sua inocência, se encontrava agora comigo.
Continuando ainda sobre a cegueira, me lembro de um ex-aluno, que deve ter hoje a mesma idade do garoto Chapecoense,que no primeiro dia de aula de uma escola que já lecionei, interrompeu a minha dinâmica de apresentação, saindo do seu lugar e indo até o meu encontro, para me dizer bem baixinho: “Tia, minha mãe morreu.”  E eu o respondi, da mesma forma: “ O meu pai também.” Desde então, nunca mais nos perdemos de vista.
O que peço a Deus, caro leitor, é que Deus nos ajude a enxergar.  Permitir-nos ver o outro, encontrá-lo e assim descortinar a nós mesmos. Sem julgamentos. Sendo gente. Permitindo-nos ser gente.
Termino com José Saramago, citando um trecho da sua obra: “È necessário sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não nos saímos de nós.”

Carinhosamente, Raquel Ribeiro.

3 comentários:

  1. Raquel
    Eu não sei se voltarás a escrever aqui. Escreveste em 2012 e agora em janeiro de 2017. Nesse teu texto brilhante, humano, doce como o belíssimo nome do blogue dizes que ficaste sem escrever por três anos... São cinco! (sorriso)
    A maior dificuldade para escrever é a motivação. Ela é até mais importante que o tempo. Nós inventamos tempo e espaço, mas não inventamos motivação. E o fator-chave da motivação é a recepção e reciprocidade. Fazemos muito mais e melhor as coisas que as pessoas recebem, e sabemos que elas recebem quando respondem.
    Em outros países, Portugal por exemplo, um texto como o teu teria dezenas de comentários. Mas, no Brasil, isso não é bem assim.
    Tens um talento fantástico para escrever crônicas, porque observas o mundo incluindo o mundo e se incluindo no mundo. A maior parte das pessoas observa o mundo como uma tela de televisão, onde as alegrias ou dores dos outros são imagens frias.
    Chapecó foi um marco em muitas vidas. Esse menininho, aqueles filhos todos, aquelas esposas recebendo medalhas por seus maridos ausentes para sempre, teu pai... Todos eles são queridos demais, pessoas demais, inspiradores demais para serem esquecidos.
    Não deverias parar.
    Ou eu estou sendo tremendamente egoísta, porque amo textos bons (ainda mais os excelentes) ou estou sendo apenas como teu amigo: se tens um desejo e um dom, ambos singelos como a resposta de uma criança de seis anos, que estás fazendo por eles.
    Felicidades. Un abbraccio

    ResponderExcluir
  2. Ah, sim, desculpa-me. Também perdi meu pai e minha mãe... Imagino um pouco do que o garotinho sentiu e do que tu sentiste.
    Seguindo-te.
    Un abbraccio

    ResponderExcluir
  3. Meu caro leitor Occhi di bambino, não sei como viestes parar aqui, mas sou imensamente grata pelo teu comentário. Na verdade, havia três anos que não escrevia mesmo, mas o texto de 2014 foi apagado por alguns motivos pessoais. Acredito que não dverá demorar muito para sair um texto novo pois agora também os público num jornal local, a qual tenho prazos. Um abraço e volte sempre!

    ResponderExcluir